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  • Juliana Pina

Carta pra quem quiser


Salvador, novembro de 2020


Talvez a gente ainda não se conheça, mas eu te escrevo pra que você leia isso com o corpo todo.


Quero te contar das viagens que eu tenho feito sem sair do lugar, nesses tempos. Do eterno transe atlântico que o oceano no meu peito me faz navegar. Às vezes acho que sei pra onde tô indo, o que tô fazendo, penso que tô no controle de tudo. Sinto que sei muito sobre as marés, mas depois eu lembro que me ensinaram muito mais sobre os desertos. Mas no fim das contas, eu sinto que tenho errado nos caminhos certos.


Eu treino meu olhar pra enxergar mais longe, meus ouvidos para ouvirem mais fundo, minha fala pra ser mais direta. De vez em quando me pego podando as arestas das minhas florestas e modificando meus mapas. Os territórios abandonados me doem profundamente. Detesto ver que tem tanta casa vazia e tanta gente sem casa.

Também lamento muito o salitre corroendo as estruturas na orla da cidade.


Mas eu tendo a acreditar nas forças invisíveis, nos movimentos coletivos e nas sintonias dos abismos. Não sei se você aí do outro lado também é assim, mas às vezes eu me acho otimista demais com o futuro. Tenho uma esperança bonita e ridiculamente ingênua sobre um outro tempo de existência, um outro modo de ficar, de partir, de criar. Eu boto fé em tanta coisa boa... que às vezes eu me sinto meio mal por isso. Essa mania estranha de botar açúcar no salgado, chamar isso de “agridoce” e tentar convencer todo mundo de que fica melhor assim, sabe? É um pouco disso.


Me pego sempre escrevendo sobre temas sem fins concretos, nunca chego a lugares definitivos, eu não concluo praticamente nada com meus textos. Realmente não sei se caibo nas coisas bem acabadas. Gosto de ter a possibilidade. Eu atiro a isca bem longe, sento na beira dos meus olhos e me ponho a conversar com os peixes... não pra pescar, mas pra ser pescada por eles. Às vezes, tenho medo de como tudo isso chega aí do outro lado. Tenho medo de assustar ou afastar o outro com a minha entrega e também com o meu silêncio. Às vezes eu mergulho de cabeça, às vezes eu só molho o pé. E nem sempre tem peixe... e tá tudo bem.


Bom, eu espero que o sol que vejo daqui possa aparecer aí também em algum momento. Espero que a lua seja um farol pra você em qualquer lugar do mundo que você estiver. Espero que alguém ou alguma coisa te faça cosquinha e que encostar com carinho seja sempre um caminho possível. Eu quero que saiba que eu me vejo em você, seja lá quem você for, apesar de não te ver agora, de não ter te visto nunca, de não nos vermos há um tempo ou mesmo de ter te abraçado ontem. Que, de alguma forma, em alguma frequência (de rádio ou de nave espacial), eu te sinto em mim; eu posso ouvir algumas bolhas estourando aqui dentro. Quero que saiba também que eu sinto saudade de tudo que não conheço e dos lugares que nunca visitei. E que me dá água na boca só de saber da existência de ouvidos atentos pelos quais minha voz escorregou um pouquinho.


To te enviando também alguns pedacinhos de paz que os meus olhos alcançaram.

Um cheiro!




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